28 de abril de 2009

Capítulo 11

Entre Ari e Gershwin

A vida em Assis foi divertida, até o dia em que a febre amarela se manifestou. Trêmulo, Casé aproveitou a oportunidade de deixar a cidade e novamente experimentar o prazer de não se fixar a nada em lugar nenhum – exceto ao pais e irmãos, nos diferentes endereços em que viveram no Cambuci, numa casa sempre movimentada e que funcionava também como pensão. Lá, além de Marcos, um menino negro adotado por Isabel, moraram, entre outros, os trompetistas Dorimar e Edgar Capitão, o trombonista Norato e o pianista Paulinho Preto.

De novo na Capital, com a doença controlada, em pouco tempo Casé está na ativa. Em 11 de julho toca no Teatro Cultura Artística num show que resulta no primeiro LP de 12 polegadas feito no Brasil. Lançado pela Columbia, Dick Farney Plays Gershwin, tem sete faixas, de que participam também Chu Viana e Rubinho Barsotti. Em 5 de agosto o quarteto retorna ao Cultura, desta vez para participar de um festival de jazz. Entre os organizadores está o radialista e produtor Roberto Corte Real, um dos mais entusiasmados seguidores da carreira do saxofonista.

Dois discos resultam da gravação ao vivo dos shows, feita por Carlos Moura. O primeiro é Jazz Festival n°1, com apenas três faixas (Pennies from Heaven, Blues e Out of Nowhere), que a RGE logo pôs à venda. O outro, lançado 22 anos mais tarde pela Bandeirante Discos, é História do Jazz em São Paulo. Duas faixas têm Casé. O festival reuniu músicos de prestígio - Simonetti, Maciel, Dorimar, Demétrio, Strawinsky, Pirituba, Rud Wharton, Aimé Vereck, Juvenal, os irmãos Araken e Moacir Peixoto, Gafieira, Caco Velho, Bolão, Robledo, João Donato, Carlinhos, Ed Lincoln, Bebeto, Jô Soares, os irmãos Castro Neves, Paulo Moura. Entre todos, Corte Real destaca só um no texto da contracapa: “o extraordinário sax alto Casé”.


“Fiquei maluco”, dizia Paulo Moura aos amigos, de volta ao Rio, relatando o que ouviu no Cultura Artística. Entre pérolas do jazz, Casé sacou Risque, de Ari Barroso. Poderia tocar de mil maneiras diferentes, mas naquela fase vinha tirando uma sonoridade cool, à Lee Konitz e Paul Desmond. “Cê tá legal nessa onda, mas devia ouvir mais o Charlie Parker”, provocou Barsotti uma vez, caminhando pela calçada da Avenida Ipiranga. Casé manteve a mudez habitual. Acontece que Dick Farney, então ligado à escola de Dave Brubeck, parecia sutilmente sugerir ao saxofonista que tocasse à Desmond. Casé satisfazia a vontade do chefe sem nenhum esforço. Com o domínio que tinha do instrumento, era-lhe fácil captar gêneros e a personalidade de intérpretes. Foi por isso que anos depois, no começo da década de 1970, surpreendeu até um velho amigo ao tocar um choro no clarinete, no camarim do restaurante Narita, na Liberdade.

– Ué, pensei que você fosse jazzista, mas você é um chorão - estranhou o saxofonista Pirahy.

Ele era, na verdade, tudo o que a música pedisse.

***
A soma de elogios poderia empurrar Casé em direção ao poço das vaidades. Mas fazer carreira solo, exibir-se mundo afora e capitalizar prestígio e reconhecimento não estavam entre as suas preocupações. Para ele, havia coisas mais importantes: fugir para cidades pequenas, a pesca, o silêncio, poucos amigos, o direito de não se fixar, de romper com a rotina onde quer que estivesse, cada vez que lhe desse na telha. Voltar a São Paulo, ao Ponto, de novo sair de São Paulo. Por que recusar convite para uma temporada em, digamos, Poços de Caldas? Pois lá vai ele, em 57, ao lado do pai ao trompete e de Luiz Melo ao acordeom. Apresentam-se na boate Bauxita, onde Melo teve, pela primeira vez, um piano à sua disposição. Tudo caminha bem, até o dia em que o saxofonista recebe, e aceita, um convite para transferir-se, em Poços mesmo, para o Palace Casino. Vai, ganhando três vezes mais, tocar com o pianista Walter Wanderley.

No ano seguinte Casé retornaria a Poços para se integrar no Casino ao conjunto do acordeonista italiano Frontera. Banda boa: Papinha no trompete, De Túlio na guitarra, Luiz César no baixo, Burrinho na bateria. Foi uma temporada divertida. Em companhia de Papinha, Casé fez longas pescarias na represa Bortolan. Quando faltava energia na cidade, Papinha passava roupa com ferro a brasa no quarto do hotel. Enquanto isso, os dois conversavam. Entre tantos mistérios, havia um que intrigava o trompetista: Casé tem memória e ouvido ótimos, decora as pastas de partitura e, mesmo quando a orquestra toca um arranjo dele, lê nota por nota. Por quê? Resposta curta: “É pra não faltar com o respeito aos colegas”.


Respeito era bom, e ele gostava, estivesse ao lado de um músico principiante no interior ou sendo apresentado no Rio a um nome como Raul de Souza, por exemplo. Eles se conheceram em 57. Juntos, apresentaram-se no programa de Paulo Santos, na Rádio Jornal do Brasil. Era um concurso de jazz. No primeiro encontro, sem mais delongas, foram direto ao assunto: dividiram o primeiro lugar e uma garrafa de cachaça.

Mesmo reconhecido como trombonista muito acima da média, Raul passava por uma daquelas fases difíceis, de colar o instrumento com esparadrapo. Casé, não. Carregava, para admiração do colega do Rio, um saxofone Selmer. Mera coincidência. Mais de uma vez foi Casé quem circulou com instrumento capenga, e muitas outras vendeu o sax para atravessar períodos de escassez de dinheiro.

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