28 de abril de 2009

Capítulo 5

Do circo à Usina

Por quase três anos a família Godinho levou vida de saltimbanco. Depois de Guaxupé, a primeira parada do circo se deu, por coincidência, em Passos, a terra natal de Clóvis. Ao lado do pai ao trompete e de Sebastião à bateria, o menino integrava a orquestra do Irmãos Martins. Casé logo reforçaria a seção de sopros, convencido pelo pai a empunhar o sax, e não trombone, como queria inicialmente.

Dramas, comédias, as intervenções do palhaço Baratinho – tudo era pontuado pela trilha sonora feita ao vivo. De ônibus ou de trem, de cidade em cidade, a trupe atravessava o interior de Minas e São Paulo. À frente seguia o caminhão transportando lona, cenários, figurinos, madeiras e ferragens das arquibancadas e os móveis dos artistas, que montavam o circo em mutirão. Nas temporadas, de dois a três meses de duração, alojavam-se em casas alugadas. Em todo lugar, fosse em São Paulo ou na pequena Monte Sião, os espetáculos arrancavam aplausos entusiasmados graças à receita infalível: primeiro a orquestra, depois os palhaços e malabaristas, finalmente o drama.

Do Irmãos Martins, Godinho transferiu-se com a família para o Circo Bandeirantes. Tentou estimular as filhas a integrarem o elenco. Dalva, a mais velha, chegou a participar de um ensaio andando sobre garrafas. “Não quero. Não vou mais”, comunicou ao chegar em casa. Tudo bem: permeado por um repertório bem escolhido, o espetáculo continuava.

Três anos após a saída de Guaxupé, a família estacionou com o Bandeirantes em Uberaba, no Triângulo Mineiro. Ao término de um espetáculo, surgiu nos bastidores um homem que piscava os olhos incessantemente. Estava em busca de reforços para a orquestra da poderosa Usina Junqueira, instalada perto dali, em território paulista. Queria falar com Godinho. Por determinação da patroa, Sinhá Junqueira, o homem já havia ido a Barretos, Alfenas, Muzambinho, Cássia, Poços de Caldas, São Paulo e Rio, sempre com a tarefa de contratar músicos competentes. Fez a proposta: Godinho e a família iriam de mudança para a usina, importante núcleo produtor de açúcar e álcool localizado no município de Igarapava, divisa de São Paulo com Minas, para integrar, com os filhos mais velhos, a jazz band regida pelo maestro Décio Nogueira. Morariam sem pagar aluguel na vila de 800 habitantes. Convite interessante, mas recusado.

Meses depois, a caravana atravessou o Rio Grande pela ponte onde se viam perfurações de balas, resquícios da Revolução de 32. Após a estreia em Igarapava, Godinho foi visitar a Usina. Pensando bem, ficar por ali não seria mau negócio. Era um lugar com boa organização, escola, farmácia, ambulatório médico, armazém de secos e molhados, alfaiatarias, bares, correio, campo de futebol, quadra de basquete, bar, capela, dois clubes - um para os diretores, outro para os operários – e até telefone no escritório da administração. Uma barreira de eucaliptos protegia das rajadas de vento os dez alqueires da área residencial, perto do rio.

As crianças poderiam frequentar regularmente a escola. Godinho seria registrado como seleiro, mas teria como principal incumbência tocar nas recepções oferecidas por dona Sinhá, e eventualmente levar a outras cidades, por intermédio da orquestra, o nome da usina pintado a óleo no bumbo da bateria. Duas casas foram oferecidas a Godinho – uma para a família, outra para a oficina de consertos e fabricação de sapatos. Inicialmente, nada disso entusiasmou Isabel. Ela gostava da vida itinerante do circo, mas o argumento de Dalva a convenceu:

– Vamos parar num lugar, ter uma casa decente, um endereço.



Em 1942, a família instalou-se na casa n° 12 da Rua 1. Três anos de tranquilidade e disciplina: auxiliado por Sebastião, Godinho ficava na oficina, enquanto Isabel administrava a casa e distribuía funções à molecada - Casé ia bem cedo à padaria, Walter ajudava na faxina, Dalva cozinhava, e assim por diante. Ao fim de cada safra, os empregados da usina passavam uma temporada de relativa calmaria, dedicando-se ao plantio e à manutenção de equipamentos. Godinho reservava a noite para a criação de arranjos e a longas conversas com amigos – um deles o vizinho João Ribeiro, trombonista da orquestra, por vezes acompanhado pelo filho Altayr.

Para a admiração de todos – a começar por Casé –, Clóvis realizava proezas inimagináveis. Estudava na varanda de casa. De vez em quando, para variar, deixava o sax de lado. Se pegasse, por exemplo, o trompete, fazia-o soar como se ele e o instrumento fossem velhos conhecidos – e isso não se restringia aos sopros.

O baixista da Grande Orquestra, Ladislau, mineiro de Muzambinho, resgistrado como encanador, era músico de grande sensibilidade. Compunha peças complexas, como o Dobrado Sinfônico. Um dia, escalado para tocar numa missa solene, não pôde comparecer. Houve um princípio de pânico, até que alguém se lembrou de Clóvis. O menino foi levado às pressas para a igreja. Do alto dos seus 16 anos, pegou pela primeira vez o contrabaixo acústico. Em poucos minutos, passou a tocar com inexplicável desenvoltura.


Um comentário:

JC Lang disse...

Na época da Usina Junqueira, meu pai (Pedro), contava que ele e o Valtinho jogavam futebol escondido do meu avô. Ele queria que os dois se dedicassem exclusivamente ao estudo de música.

 
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