28 de abril de 2009

Capítulo 9

Um mito no Ponto

Em 1954, após a viagem pelo Oriente Médio e pela Europa, Casé tornou-se ainda mais mitológico. Cada vez mais solicitado, era personagem central de feitos extraordinários narrados, às vezes com informações imprecisas, nas rodas do Ponto dos Músicos. Uma das histórias que durante semanas correram a esquina da São João com a Ipiranga se referiu à noite em que foi abordado pelo maestro Elly enquanto esperava a hora de entrar no palco de um dancing. O Cuba Danças, diziam alguns. O Avenida, corrigiam outros. O fato é que lá apareceu, segundo uma versão, o maestro Carioca, que em outra roda de conversa seria Pachequinho, ou, numa terceira, K-Ximbinho, que, garantia outra turma, era Severino Araújo.

Todos, porém, concordavam num ponto: tratava-se de um importante arranjador do Rio, em carne e osso ali no dancing para conferir a capacidade do rapaz cuja fama se espraiava pela então chamada Guanabara. Deu a Elly uma grade com parte especialmente escalafobética para sax alto. Alheio a tudo, Casé jogava damas no camarim. Elly chegou com o arranjo na mão e ressaltou o desafio que o aguardava. De alguma forma, Casé repetiu o feito de Clóvis no caso da orquestra argentina de bandoneóns: sem dar grande importância à ansiedade de Elly, terminou o jogo, foi para o palco, abriu a partitura, leu à primeira vista e voltou improvisando sobre uma harmonia cheia de ciladas. Emocionado, o autor da peça foi ao palco e reconheceu:

– O que se fala de você é pouco. Você é muito mais.

Propagavam-se histórias como essa a partir do Ponto dos Músicos. Perto dali, na mesma Avenida São João, a orquestra de Luiz César arrasava no Lido, que mais tarde mudou-se para a Rua Araújo e passou a se chamar Metrô. No Rio, destacava-se o conjunto Os Copacabana. O acordeonista era um acreano magrinho chamado João Donato, que empolgava o público toda vez que solava La Vie en Rose. O convite de um hotel trouxe o grupo para São Paulo. Para Donato foi o mel na sopa. Poderia, finalmente, ver de perto músicos como o multiinstrumentista e brilhante arranjador Boneca, o guitarrista Betinho, o baterista Gafieira, o trompetista Salazar, saxofonistas como Bolão, os irmãos Paioletti e o trombonista Edson Maciel, o Maciel Maluco.


A temporada dos Copacabana deslizou com tranquilidade até o dia em que um dos músicos propôs a Donato:

– Temos 40 minutos de intervalo. Vamos ver o Maciel tocar aqui perto?

– É agora – respondeu o acordeonista.

Maciel na ocasião trabalhava com o grupo de Robledo, pianista argentino que se radicou em São Paulo. Quando Donato entrou na boate e ouviu de perto a sonoridade tirada do instrumento por Maciel, sentiu uma espécie de vertigem. O tempo parecia ter parado, até que Donato foi cutucado pelo colega: “Está na hora de voltar”. E ele: “Daqui a pouco eu vou”. Demorou a retornar ao trabalho. A história se repetiu nas três noites seguintes. Donato perdeu o emprego.

Dias depois, encontrou-se com o maestro Luiz César e, com sinceridade, confessou: “Me mandaram embora porque disseram que eu nunca chego na hora”. A sorte estava com ele: foi contratado, trocou a pensão em que morava pela casa do novo patrão e, o melhor de tudo, passou a fazer parte de uma orquestra que vinha causando furor com um time de alta envergadura, composto por muitos daqueles músicos que admirava.

Um dia, durante um ensaio, o maestro aproximou-se do saxofonista Rafael Galhardo e, sem rodeios, informou: ele teria mais uma semana de emprego. Contrataria o rapaz magrinho que assistia ao ensaio. Era Casé. “Paro hoje”, respondeu-lhe Rafael.

Na casa noturna chamada Metrô, a big band de César vivia momentos cintilantes. Ouvir aqueles músicos maravilhosos – e ainda por cima vê-los vestidos como rumbeiros – passou a ser programa obrigatório. Casé e Maciel tocando juntos era um acontecimento para não se perder.

Quinze dias após ter sido despedido, Rafael foi chamado a reassumir seu lugar na orquestra de César. Nenhuma surpresa, apenas a confirmação de uma das características mais conhecidas de Casé – a de não sossegar por muito tempo num mesmo lugar. A outra – vendia o sax sempre que precisasse de dinheiro – ele havia exibido logo de início, ao chegar sem instrumento para o primeiro ensaio.

Maciel e Donato iniciaram nessa fase uma grande amizade, mantida quando o acordeonista voltou a morar no Rio. Donato retornava sempre a São Paulo. Desembarcava de madrugada na Rodoviária, perto da Estação Júlio Prestes, andava até a pensão em que Maciel morava, na Rua Guaianazes, e o acordava com um assobio. Às vezes, acompanhado pelo baterista Milton Banana, viajava especialmente para ouvir o som de Casé, com quem Donato e Maciel vararam diversas madrugadas no Centro, em bares e restaurantes como o Parreirinha. Os três se chamando, sabe-se lá por quê, de “Mangento”.

Também Rafael e Casé, apesar da cena tensa vivenciada na orquestra de Luiz César, seriam bons amigos. Mais tarde tocariam juntos na prestigiada orquestra de Elcio Alvarez. Nela, Rafael testemunhou mais um dos muitos casos prodigiosos atribuídos a Casé: transpôs na clarineta, à primeira vista, uma peça dificílima escrita para flauta. Nada, porém, era capaz de fazer o músico singular transformar-se num homem vaidoso. “Vocês têm que estudar com o Rafael”, dizia aos que lhe pediam aulas de clarineta. Numa das ocasiões em que viu Casé ficar sem instrumento, Rafael emprestou-lhe, novinho em folha, um Selmer Balance. Sete meses depois, pediu-o de volta e não o reconheceu. Estava gasto, desbotado.

– Ô Zé, isso aqui parece ferro-velho. Cadê meu instrumento?

– É esse, pode ver o número.

Conferia. Rafael precisou mandar reformar o sax. Para Casé, episódios como esse não causavam constrangimento. Apego, no mundo em que vivia, era desnecessário. O que valia era a simplicidade, a família, os amigos, as pescarias, as poucas palavras acompanhadas pelo tique de esfregar as mãos e por doses da sua bebida favorita: martini seco, degustado em bares modestos como era o Ponto dos Músicos, aonde não paravam de chegar informes das suas façanhas.

Uma delas circulou em 1955. O trompetista Atílio, da orquestra de Totó, era grande apreciador de azeite de oliva, e nos restaurantes fazia aos companheiros de mesa sempre o mesmo pedido: “Me passa o óleo bom?” Para sua irritação tornou-se conhecido, evidentemente, como Óleo Bom. Liderava um pequeno conjunto de bailes que tocava principalmente no Guarujá, e foi surpreendido certa vez pelo sumiço do clarinetista. Em cima da hora, chamou Casé. O substituto levou o sax alto. Passou a noite lendo à primeira vista as partituras escritas para clarinete. Diante dele, perplexo, o mesmo Óleo Bom que antes do baile chacoalhava o repertório:

– Meu Deus, como você vai tocar isso aqui?

Ocorreu em 1962 outra cena de tensão provocada pelo fato de Casé ler e interpretar com perfeição partituras nunca vistas anteriormente. Deu-se durante uma reedição do Festival de San Remo em São Paulo, com a participação de 15 cantores e um maestro, todos estrangeiros. A produção caminhou normalmente até a véspera da estréia, uma quinta-feira, dia do primeiro ensaio com a orquestra formada por brasileiros. Trabalho suspenso: os arranjos, alguns intrincados, seguiram por engano para um aeroporto do Nordeste.

– Fica para amanhã à tarde - decretou o maestro.

– Não posso, tenho outro compromisso – avisou Casé.

A testa franzida traduziu o nervosismo que imediatamente se apoderou do maestro. No dia seguinte, a orquestra ensaiou sem o primeiro alto. Ele chegou no começo da noite, afinou o sax, nem olhou para as partituras e convidou o vizinho de estante, Carlos Alberto Alcântara, para uma cerveja. De volta, só abriu a pasta quando o show começou. Após a terceira música, o maestro interrompeu o espetáculo para se desmanchar em elogios a Casé. Mas nem sempre ele recebeu a atenção merecida. Durante uma jam session na Vila Buarque, foi quase suplantado pelo falatório de um público desinteressado. Aí, resolveu a situação rapidamente: tocou Night and Day da pior maneira possível e foi para casa.

Um comentário:

lcontestador@gamil.com disse...

Ponto dos músicos: Bar Avenida, esquina da S. João com Ipiranga, vizinho do cabaré Maravilhoso. Esse bar depois teve duas filiais, uma, Salada Rio Branco, na esquina da Rio Branco com Aurora, e Nova Avenida, na mesma S. João, pouco mais abaixo.

 
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