28 de abril de 2009

Capítulo 13

Charme em Congonhas

Na orquestra de Silvio Mazzuca, Casé se tornou grande amigo do também saxofonista Lambari, a quem deu uma daquelas aulas tão sintéticas quanto eficazes. Primeiro, convenceu o parceiro de naipe a trocar o tenor pelo alto. Três bailes depois, chamou-lhe a atenção: “Ô, Lambari, agora você toca alto!”. Mensagem entendida. Lambari estava tocando o instrumento com timbre e personalidade de tenor. Foi para casa, estudou durante horas e, no dia seguinte, no camarim da Rádio Bandeirantes, fechou a porta e tocou. Escalas, arpejos entre o forte e o pianíssimo. “Toca mais”, dizia Casé. “Continua!”. Num dado momento veio o veredicto: “Agora você encontrou o caminho. É só continuar estudando”. Dois meses depois, durante um baile, uma surpresa: Casé trocou as suas partituras, de primeiro alto, com as de terceiro, da estante de Lambari, que em vão relutou. “Toca, toca!”, disse-lhe o vizinho, apontando para os arranjos de swing, bolero e samba-canção.

Lambari não havia conhecido um músico tão admirável como solista, improvisador, leitor e intérprete. Após um baile, ainda fascinado pela atuação formidável do amigo, arriscou-se a perguntar, entre uma pizza e uma cerveja.

– Zé, vi o Clóvis quando eu tinha 4 anos, e sei que ele tocava muito. Mas era como você tocou esta noite?

Pausa. E vem a resposta:

– Lambari, eu sei que tenho o dom. Mas não vou conseguir me igualar a ele.

Só uma vez Lambari viu Casé errar uma nota. Foi durante um baile no salão de Congonhas, em 1958. O aeroporto simbolizava a modernidade, o rompimento com o provincianismo ainda reinante na cidade. Ali se ofereciam serviços bancários, rádio-telegrafia internacional, florista, um café aberto a noite inteira; ali estavam as escadarias arredondadas, o piso com motivos geométricos, o painel ¨Homenagem aos Trabalhadores”, de Di Cavalcanti e Clóvis Graciano, ali estava a cortejada orquestra de Silvio Mazzucca. De repente, uma nota fora do lugar.

– Essa merda tá me atrapalhando - irrita-se Casé. E tira do rosto os óculos de aro preto que havia adotado dias antes, desnecessários para quem enxergava perfeitamente. Puro charme bebop.

A orquestra cumpria uma longa sequência de bailes, programa de rádio, gravação de LPs e de um programa semanal na TV Tupi do Rio, no antigo Cassino da Urca. Os músicos viviam na estrada. No ônibus, a jogatina corria solta. De repente, para viajar, Casé, que não revela na cacheta o mesmo brilho exibido ao sax, passa a trocar a Via Dutra pela ponte aérea. Ficava mais barato do que bancar as apostas perdidas no baralho.

Atitudes como essa causavam estranheza apenas inicialmente. Eram coisas de Casé, capaz de convidar um amigo para um drinque e permanecer de olhos grudados no copo sem proferir uma única palavra. Em compensação, aos poucos que se tornavam próximos, a qualquer momento revelava traços bem escondidos. O sujeito misterioso e reservado podia surpreender. Numa viagem a trabalho, sorteado para dividir o quarto de hotel com o tenorista Armandinho Bate-Papo, cujo apelido dispensava maiores explicações, usou o ataque como prevenção: nocauteou o colega com impiedosa verborragia. Bate-Papo pediu para trocar de quarto.

“Sabe o que tenho vontade de fazer”, perguntou uma vez a Lambari. “Comprar um planador e ficar estudando lá em cima.” Manifestavam-se nele repentes de tristeza, apesar dos acenos da glória e do dinheiro para ser feliz, questionados nos versos de Dorival Caymmi em Saudades da Bahia, que o saxofonista gravou no LP Samba Irresistível. Lançado pelo selo Hi-Fi Variety, da Columbia, em 1960, traz uma raridade: Casé no tenor em três faixas. Além de Casé no sax e clarinete, tocam Paulo Lima de Jesus, o Paulinho Preto, piano; Garoto, vibrafone; Heraldo do Monte, guitarra; Chu Vianna, contrabaixo; Dirceu Medeiros, bateria; Rogério Tizi, ganzá e afochê, e Corisco, pandeiro.


O repertório do disco de Casé e Seu Conjunto promove um encontro de sambas da geração de Lupicínio e Noel, como Se Acaso Você Chegasse e Palpite infeliz, com a bossa nova, novidade do momento – Esse teu Olhar, de Jobim -, além de Ensaio de Bossa, samba de Casé com acento de blues. Na contracapa, o radialista Henrique Lobo conta que lhe perguntam repetidas vezes se Casé é o terceiro maior sax do mundo. “Não é possível alguém discutir, explicar, comentar em tais termos”, reage Lobo. “Casé é um dos melhores saxofonistas do mundo. É mesmo. Se quisesse, poderia tocar em qualquer das orquestras do Estados Unidos ou da Alemanha. Seu sucesso será o mesmo no Brasil ou na China”.

China? Alemanha? Seria preciso ir para tão longe de casa? Em busca de quê? O que para ele era importante estava ao seu alcance. A família, o martíni seco, as fugas para o Interior, o carteado no Clube Sereno, o Ponto para conversar e beber - com direito a um bem temperado sanduíche de pernil –, o snooker situado ali perto, onde às vezes aparecia Carne Frita, o taco invencível, para exibições que eram pura harmonia. E havia os amigos, como os irmãos Alcântara, mineiros de Uberlândia – Carlos Alberto, saxofonista, Maguinho, trompetista, e Ratinho, baterista. Eles viram Casé pela primeira vez em 53. Moravam em Apucarana, Paraná. Um dia, Maguinho e Ratinho saíram com o pai, Carlos, líder da Orquestra Tropical, para comprar arranjos e instrumento em São Paulo. Foram à casa de seu Godinho.

Um rapaz retraído, pálido, de pijama listrado, deixa o quarto, onde momentos antes estudava, aparece na sala e cumprimenta rapidamente os visitantes. Tem nas mãos uma clarineta, que começa a limpar. Aí está, diante dos visitantes, o mito de toda uma geração de músicos. Carlos cochicha aos filhos:

– Esse é o Casé.

De Apucarana, Carlos transferiu-se com a família para Uberlândia, Ribeirão Preto e, finalmente, Catanduva, no oeste paulista. Sua orquestra agora se chama Marajoara, uma das várias sediadas no Interior do Estado. Mas em 1958 a cidade começa a ficar pequena para os Alcântara. É hora de levantar voo para a Capital. O primeiro a chegar é Maguinho. Vai morar na pensão de dona Zoara, na Rua São Vicente de Paula, Santa Cecília, e começa a tocar no Rififi, na Avenida Rio Branco. O restante da família viria em seguida. Todos se tornariam grandes amigos de Casé, que na casa dos Alcântara devorava os pasteizinhos e a sopa de fubá com ovo e cheiro-verde de dona Inhá, mãe de Ratinho, Maguinho e Carlos Alberto.

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu Theo Vinício, tecladista tive o privilégio de ter o Casé ao meu lado na minha casa, morava no Cambuci e o seu Godinho estava sempre no bar do Pimentel esquina com Teixeira mendes e rua do Lavapes e o Casé vivia no Astória, e era sempre o mesmo tipo, tomando uma caipirinha e falava super baixinho mas era uma puta amigão meu. .obs: ele fez um arranjo da musica Qui sas qui sas na tonalidade maior...era próprio dele essas coisas malucas,,o grande "CASÉ"

 
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