28 de abril de 2009

Capítulo 21

Octopus nas alturas

Novamente em São Paulo. Bastava a notícia correr no Ponto que chegavam a Casé convites para fazer bailes, gravar trilhas, fazer programas de televisão. Na orquestra de Osmar Milani, reencontrou Pedro Contesini, dos tempos do Cuba Danças, e se tornou amigo do pistonista pernambucano Odésio Jericó.

Em 67, o Zimbo Trio foi à casa da família Godinho. Quem fez a recepção foi Isabel. Em seguida chegou Casé, levemente mal humorado, vindo da gravação de um programa de tevê. Rubinho, Amilton e Luiz Chaves estavam ali para, coincidentemente, convidá-lo para um trabalho na televisão, um programa de jazz na Bandeirantes.
- Vocês são três cobras, faz tempo que não pratico, preciso estudar para tocar com vocês.

Difícil entender a recusa. Na mesma época ele havia participado com destaque de uma edição do Show em Simonal, na TV Record, para deleite do engenheiro de som do programa, José Eduardo Homem de Mello, o Zuza, que na década anterior havia sido o titular da coluna Folha do Jazz da Folha da Manhã. Em 58, para estrear no jornal o Teste da Cabra Cega, Zuza conseguiu o inimaginável: fez Casé falar muito mais do que o habitual.


Extraída do Blindfold Test da Down Beat, a coluna convidava o entrevistado a ouvir discos de intérpretes não revelados para identificá-los, dar-lhes notas de zero a cinco e opinar sobre faixas gravadas em épocas diversas. Casé deu 2 a Lee Konitz, elogiou Charlie Parker, comparou o sentimento de Lester Young ao clarinete com o de Orlando Silva cantando, deu a nota máxima tanto a Horace Silver e os Jazz Messengers como a Stan Getz, achou Johnny Hodges envelhecido, Paul Desmond cansativo e Sonny Rollins excêntrico.

Dez anos depois de dar essa opinião sobre Rollins, Casé embarcou num projeto que teria, por coincidência, a excentricidade como elemento mais marcante. Foi contratado para fazer parte do Brazilian Octopus*, o grupo que tocaria no show Momento 68. A multinacional Rhodia produziria, para se promover, um espetáculo que lançaria mão de uma série de ousadias num dos mais tensos períodos da ditadura militar. Chamou Millôr Fernandes para escrever, Ademar Guerra para a direção de cena e Rogério Duprat para a direção musical. Os ensaios duraram seis meses. No elenco, Walmor Chagas, Raul Cortez, e, liderando os bailarinos, Lenny Dale. Para cantar, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Eliana Pittman. Coisa fina: contrato de um ano, com polpuda remuneração.

Nos hotéis, Casé dividia apartamento com Carlos Alberto Alcântara, amigo de outros carnavais. Mantinha os longos silêncios de sempre, a qualquer momento interrompidos por súbita loquacidade. De repente, “mas, porra...” – e as reticências o levavam de volta à introspecção.

Público em êxtase, crítica fascinada, o Octopus nas alturas, o show segue rumo às capitais do Brasil, a Buenos Aires, a Lisboa. Em Salvador, às sete da noite, os artistas começam a se preparar para sair em direção ao teatro. Alcântara tira da bagagem uma vitrola portátil e põe um disco de Cannonball Adderley. Casé ouve em silêncio. Pede para ouvir de novo.

– Vamos, tá na hora – lembra o dono do elepê.

– Não vou tocar depois de ouvir esses caras.

Deu trabalho, mas Alcântara conseguiu fazê-lo mudar de ideia. Conhecia bem o parceiro, sabia lidar com ele. Um dia, em Buenos Aires, ao voltar à noite para o hotel, encontra no apartamento um Casé aceso.

– Mosquitão, some que eu tô a fim da camareira.

Recomendação atendida. Alcântara volta quase duas horas depois e encontra Casé dormindo. Não resiste à curiosidade:

– Conseguiu?

– Tá quase – é a resposta sonolenta.

No dia seguinte, com o auxílio diplomático do companheiro de quarto, conquistou a moça.


O Octopus arrasa. Grava, com o saxofonista japonês Sadao Watanabe, o disco Sadao Meets Brazilian friends. No repertório, entre outras, Bim-bom, de João Gilberto, Jequibau, de Ciro Pereira e Mário Albanese, Eu e a Brisa, de Johnny Alf, e Barquinho Diferente, de Sérgio Augusto. No estúdio, Casé, tímido, reluta em se soltar. O japonês insiste, ele acaba cedendo e improvisa em Bossa na Praia, de Pery Ribeiro e Geraldo Cunha. Em poucos minutos, Alemão já não duvida: “Ele engoliu o Watanabe.” Em carta enviada a Hidenori Sakao, baixista residente em São Paulo, o jornalista Mamoru Oshima, primeiro crítico do Japão a se interessar por música brasileira, refere-se ao disco e, em especial, ao saxofonista mineiro: “Esse Casé é muito bom.”

O gordo salário da Rhodia saía todo dia 2. Uma vez, constrangida, a encarregada pelo pagamento informou que haveria um atraso - nada grave, no máximo uma hora até que chegasse o dinheiro. Ouviu-se uma frase seca diante do guichê:

– Parei!


Era Casé. Novamente Alcântara faz embaixadas para convencê-lo a ceder. Passa um mês, mais um, e outro, o dinheiro é bom, mas quem disse que Casé se submete a uma rotina, com tanta coisa interessante a ser feita fora dela? Um dia, parou de vez. Foi substituído por Hermeto Pascoal.


No mesmo ano de 1968, fez temporada ao lado de Paulinho Preto, Sakao e Ratinho no Mont Blanc. Todas as noites, numa galeria da Brigadeiro Luiz Antônio, perto da Paulista, tocando só jazz, bossa nova e samba a pedido da proprietária, Mama San, e da clientela, composta sobretudo por japoneses. Casé transita bem pela colônia. Um produtor, Mario Okuhara, convida-o a gravar o Álbum Musical Romântico pela Astrophone Records. A sessão vai começar. Okuhara aproxima-se do saxofonista e lembra:

– Não é jazz, hein? É música romântica.

– Eu sei.

Nunca ouvira antes Como Está Akasaka e Sakamiti no Club, entre outras músicas cujas partituras lhes são estendidas no estúdio. Uma das faixas abre oito compassos para um solo. Casé vira-se para o amigo Sakao, que na gravação toca piano, e pede permissão:

– Sakao, posso brincar aqui?

Autorizado, faz um improviso poético, com exata pronúncia oriental, rigorosamente dentro do pretendido pelo produtor.

Dois anos depois, gravou trilha de publicidade para televisão do barbeador Hitachi Gelmi. Até aí, nada demais. Novidade foi sua estreia e despedida da carreira de ator, no filme exibido só no Japão, em que fingiu tocar o instrumento com eloquente dramaticidade.

* Casé (sax alto), Carlos Alberto Alcântara (tenor) e Valdir Arouca (trompete). Cido Bianchi (piano), Douglas de Oliveira (bateria), Matias Matos (baixo), João Carlos Pegoraro (vibrafone) e Alemão (guitarra)

Um comentário:

skrimshander disse...

será a mesma mama san do karaokê da liberdade?...

 
`