28 de abril de 2009

Capítulo 16

Para fazer soar a orquestra

Mazzuca era daqueles chefes camaradas, que depois do baile arrastava parte da turma para comer macarronada nas cantinas do Bexiga. Administrava um grupo competente e festivo, que se transformava longe do palco em debochada bandinha a produzir sopros rascantes e semitonados. Em caricata formação militar comandada pelo toque de caixa do baterista Turquinho, desfilava a qualquer instante, onde quer que estivesse – a pista empoeirada do aeroporto de Governador Valadares, por exemplo.

Já durante o trabalho não havia tempo para brincadeira. O que interessava era fazer a orquestra soar bem, nem se isso tanto fosse preciso alterar a função dos músicos. Diversas vezes Casé fez questão de trocar de lugar com colegas de sax, passando do primeiro – aquele que puxa o naipe – para terceiro alto, ou de segundo para quarto tenor. Insistia sem apresentar a justificativa, evidente para alguns companheiros, de fazer todos se esforçarem para tocar melhor e, sem destacar ninguém, atingir uma sonoridade homogênea. Não se tratava de uma estratégia recém-criada. Na década de 1940, com a orquestra Clóvis e Elly no Cuba Danças, não era rara a noite em que Casé fazia de Pirahy o primeiro alto. O rendimento melhorava, mas para Pedro Contesini, integrante do naipe, a troca era também uma prova da humildade do adolescente que despertava o respeito dos mais velhos. E ele lá, quieto, firmemente decidido a rejeitar exaltações à sua capacidade e a exercitar impiedosa autocrítica.

Apareceu uma vez no Clube Pinheiros com um arranjo para Quintessence, de Quincy Jones. Tímido até perto dos mais íntimos, disse ao saxofonista Carlos Alberto Alcântara: “Pergunta pro homem se dá pra fazer um solo meu aí”. O homem era Mazzucca. A orquestra entrou segura, como se tivesse ensaiado. Veio o solo, e no salão superlotado o rumor deu lugar ao silêncio, rompido por aplausos. Comentário do saxofonista:

– Não saiu muito legal.

Destaque da orquestra, Casé ganhava cachês maiores do que os recebidos pelos colegas. Nessa fase, dispôs-se a comprar no Tatuapé um sobrado para dona Isabel, que não gostou da localização. Dinheiro farto, dinheiro gasto: acumular não era com ele. E se a situação apertasse, voltava a vender o instrumento. “Foi o maior músico que tive na minha orquestra”, contava Mazzucca, já na década de 70, ao filho Sylvinho. “Um gênio, um monstro, mas é como se não existisse. Não tem nada, nem documento”.

Tratava-se, de fato, de um ser extremamente desapegado, e essa característica, aliada à economia verbal, talvez ajudasse a reforçar um certo folclore. Mas documento ele tinha, sim – a começar pela certidão de nascimento, registrada no livro n° 52-A do Cartório de Paz de Guaxupé, e pelo diploma da Primeira Comunhão, feita em 19 de novembro de 1944, na Usina Junqueira. O número do RG era 1.644.346; o do título do eleitor, 202794; o do primeiro passaporte, 138018; o do segundo, 678315. A carteira da Ordem dos Músicos, n° 3359, de 1961, qualificava-o como diretor de conjunto, saxofonista, clarinetista e flautista, erudito e popular.


Até uma agenda telefônica azul ele tinha. Lá estavam anotados, entre outros, os números do acordeonista Carlinhos Mafazoli, para quem, na verdade, jamais fez uma ligação. De qualquer maneira, a relação era extensa: Aristeu, Alemão, Antônio Arruda, Avenida Danças, Bove, Buda, Botina, Bolão, Bauru, Bizoca, Chu, Costita, Capacete, Chiquinho de Moraes, Ciro Pereira, Cartola Clube, Caiubi, Carlos Alberto, Demétrio, Ditinho, Denise Dumont e Dorimar eram alguns dos donos dos números anotados. Outros: Cláudio Slon em Los Angeles, irmãos Godoy, Elcio Alvarez, estúdios Sonima e Sonotec, Felpudo, Jericó, Lambari, Mazzucca, Maguinho, Orlando Ferri, Pirituba, Paulo Moura, Portinho, Prequeté, Pirahy, Peixinho, Roberto Corte Real, Rafael e Shioda.

A agenda também tinha o telefone do INPS e o de duas mulheres que não apresentou em casa, Sandra e Vera Lúcia – ela com direito a endereço: R. Brigadeiro Tobias, 110, apto 1918. Na letra E, o número da Defesa Civil anotado como “Enchentes”, a ser acionada caso se repetisse a chuvarada que uma vez deixou a família ilhada na parte superior do sobrado da rua Siqueira Campos.

Um comentário:

JC Lang disse...

Eu lembro do Bove, que consertava instrumentos em sua casa na Aclimação. Certa vez eu levei minha tuba (eu toquei em fanfarra), para ele arrumar. Lembro bem do papagaio que ele tinha. Bons tempos!

 
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