28 de abril de 2009

Capítulo 4

Enxada, sapato e partitura

Os dias corriam devagar em Guaxupé. Cercada por morros e riachos, a cidade vivia sua modesta rotina sul-mineira. A casa para onde se mudou a família de José Ferreira Godinho, em frente da Prefeitura, a não mais que cem metros da praça da Matriz, tinha três quartos, cozinha, banheiro, sala de jantar, sala de visitas, varanda e um quintal amplo, com pés de laranja, limão, banana e uva. Sobrava espaço para abrigar a pequena família, que acabava de deixar a vizinha Passos de Minas naquele ano de 1927.

Recém-casado, Godinho chegou com a mulher, Isabel, e Clóvis, o filho de colo, decidido a não mais se dedicar à agricultura. Puxar enxada era uma atividade pela qual já havia passado, ajudando o pai, João Sobrinho, numa pequena propriedade de São João Batista da Glória, também no sul de Minas. Definitivamente, não fazia parte dos seus planos render-se à vontade paterna e engrossar o exército dos trabalhadores rurais que atuava por ali, capinando entre pés de café. Godinho havia mudado de ramo. Agora, aos 20 anos, era sapateiro. Sapateiro e músico. Com o trompete, que aprendera sozinho, escondido do pai, animaria festas, e durante o dia seria funcionário da fábrica de sapatos Irmãos Furlan.

Na cidade, entroncamento da Companhia Mogiana, o cotidiano se mexia com a chegada e partida de trens carregados de passageiros das imediações. Gente de Muzambinho, Monte Belo, Arceburgo, Juruá, que invadia o comérgio local, tido como o mais ativo da região. Além disso, para sacudir Guaxupé, só mesmo os atos de inauguração, as cerimônias religiosas ou eventos especialíssimos. Um deles havia sido realizado em 1928, ano seguinte ao da chegada dos Godinhos à cidade: Carlos Costa Monteiro, o Carluta, rico produtor de café, levou para lá o Peñarol, que perdeu por 2x1 para a brava equipe da Associação Atlética local. Outra cena de impacto se daria no ano do nascimento de Casé, com a chegada de soldados paulistas durante a Revolução de 32. Acampados no Grupo Escolar, eles conseguiram por pouco mais de uma semana alterar o ritmo da população – principalmente à noite, quando os moradores deixavam de sair às ruas.

Isabel, mãe de Clóvis aos 17, teve nos doze anos seguintes outros seis filhos em Guaxupé. José Ferreira Godinho Filho, o Casé, foi o terceiro, nascido em 26 de julho e registrado em 13 de agosto de 1932. Antes dele nasceu Sebastião, depois viriam Dalva, Walter, Pedro e Marluce. Marly, a caçula, nasceria em Espírito Santo do Pinhal, em 1941. Godinho, ou Nhô, como era conhecido na cidade, dava duro para sustentar a família. Passava o dia na fábrica de sapatos, e o resto do tempo dedicava aos arranjos de fox, sambas e marchas para o grupo que liderava. Nhô se garantia no pistom, o amigo Nenzinho no saxofone. O conjunto ainda tinha trombone, banjo, bateria, percussão, dois cantores e eventualmente um sanfoneiro bom de ouvido. Era sucesso garantido. O grupo chegou a tocar numa quermesse por 22 noites seguidas. No Carnaval, Godinho arregimentava mais músicos e os repartia para tocar em até três clubes.

O dinheiro curto obrigava o marido de Isabel a se desdobrar. Podia não comprar presentes de Natal, mas sabia defender o estômago dos oito lá de casa. Foi assim que, contratado para tocar numa festa de vários dias, organizada por ciganos de passagem por Guaxupé, não titubeou quando sentiu cheiro de carne assada. No intervalo entre uma e outra seleção, correu para casa. Minutos depois lá estava ele de volta ao palco, enquanto a mulher e os filhos se empanturravam de frango, boi e peru.

No dia-a-dia, porém, imperava a austeridade na casa de Godinho, administrada com mão-de-ferro por Isabel. Ai daquele que ousasse romper o silêncio enquanto ela, musical como o marido e os filhos, estudava flauta transversal. Armava-se com uma cinta e acabava com qualquer ruído feito pelos meninos ou pelo gato rajado que perambulava pelos cômodos. Embora remoto o perigo da rua, dona Isabel não facilitava. Brincar lá fora a convite da garotada da vizinhança?

– Ninguém sai – era a determinação mais ouvida.

Melhor, para ela e o marido, era que as crianças aprendessem a tocar. Poderiam integrar a orquestra e ajudar a cobrir as despesas da casa. Foi assim que eles se iniciaram, sob a pedagogia dura de Godinho: a cada nota errada, uma lambada na mão. O primeiro a estudar foi Clóvis. Em pouco tempo dominou com extrema facilidade o sax e a requinta, um clarinete pequeno. Num fim de tarde modorrento Godinho foi ver quem batia palma na varanda da casa. Eram músicos da cidade. Queriam saber de onde vinha aquele som ao mesmo tempo limpo e vigoroso.

– É o Clóvis – respondeu o anfitrião.

Godinho levou-os até o quarto. Lá estava o menino, equilibrando-se num caixote para alcançar com os olhos a partitura aberta sobre uma estante. Tocando em pé para não raspar o instrumento no chão, Clóvis logo integraria o conjunto do pai.


A segurança de Clóvis ao sax, ao clarinete e o que mais pusessem em suas mãos – o bandoneón, por exemplo – enfeitiçaria para sempre quem o ouvisse. E quem mais ficou marcado pela sua genialidade foi mesmo Casé, que passaria a vida inteira elogiando o irmão. Clóvis assombrava. Foi assim desde o nascimento, quando Malvina, mãe de Godinho, viu o neto recém-nascido, respirou fundo e avisou:

– Esse menino não é nosso.

Os elogios a Clóvis e à orquestra não bastavam para sossegar Godinho. Havia algo que o incomodava. Ele se esforçava o quanto podia para adiantar o serviço e, assim, poder animar bailes na região. Mas tanta eficiência, segundo se queixava discretamente em casa, havia se tornado tema de mexericos nos corredores da fábrica.

Aguentou o quanto pôde. Um dia, no fim de 1939, anunciou a decisão a Isabel: iriam embora, e não mais morariam numa única cidade. Morariam em várias. Seriam artistas do Circo Teatro Irmãos Martins, cuja temporada em Guaxupé estava próxima do fim.


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