28 de abril de 2009

Capítulo 20

Harlem no trem

A bossa nova e o iê-iê-iê permeavam a música popular. Casé passou por ambos como prestador de serviço - algumas gravações, algumas participações no Sambossa 5, que atuou em espetáculos do Fino da Bossa no Teatro Paramount, comandados por Elis Regina e Jair Rodrigues.

Em 1966, paralelamente ao avanço dos grupos pequenos, justamente moldados ao iê-iê-iê e à bossa nova, as orquestras continuavam a subsistir no mercado dos bailes. Em Catanduva, a 380 quilômetros de São Paulo, a J. Rodrigues reunia músicos da região e da Capital. Para fazer o primeiro sax alto, andou por lá o italiano Giuseppe Bove, que além de músico era luthier capaz de recuperar saxofones estropiados. Godinho deixou Jaboticabal, onde passara temporada como ensaiador da orquestra Sul América, e rumou para Catanduva. Quando Bove resolveu retornar a São Paulo, Godinho providenciou sua substituição. Ligou para Casé e apresentou-lhe as condições de trabalho: cachês muitas vezes superior aos dos demais músicos, dois ensaios por semana num salão da Vila Mota e hospedagem no tradicional Hotel Acácio, de boa cozinha.

A primeira rodada de bailes seria feita no Norte do Paraná, começando pela cidade de Primeiro de Maio. A orquestra partiu de Catanduva num ônibus desconfortável, pintado de amarelo e laranja. Viagem difícil, debaixo de chuva. O pessoal desembarcou cansado, a roupa respingada de lama. Quando chegou ao clube lá estava, elegante, o novo saxofonista. Viajara de São Paulo a Londrina de ônibus, e depois de táxi para Primeiro de Maio. Enquanto a turma se acomodava no palco, o estreante ia se apresentando a um por um: “Muito prazer, Zé Ferreira Godinho”.

A orquestra era boa. Saía-se bem na afinação, nos timbres, balançava no samba, mas seus integrantes sabiam que agora estava entre eles um músico excepcional. “Acho que ele está fazendo um teste”, pensou o trombonista Armando Maria. Após a terceira entrada, enquanto lanchava no bar do clube, Casé finalmente se manifestou:

– Gostei dos naipes.


Alívio geral. Ele não só permaneceu como passou a se envolver com a orquestra, que lhe apresentava regalias e novos bons companheiros – entre eles o ritmista Bororó, excelente papo e um copo respeitável. Durante uma viagem no trem saído de Penápolis para uma temporada em Mato Grosso, o único a ter à disposição cabine com leito foi Casé. Em resposta ao privilégio, ele escreveu durante o itinerário a grade com um arranjo para Harlem Noturno. Outra prova de que estava gostando da experiência viria pouco tempo depois, quando apareceu com partituras contendo um tema criado por ele para ser prefixo da J. Rodrigues. Sem falar no método escrito a caneta tinteiro que levou para o pessoal, numa época de difícil acesso à informação – tudo com direito a dicas. “Evitem o glissando”, sugeria aos trombonistas Mauro, Armando e José Maria, que por sua recomendação levaram os instrumentos a São Paulo para uma reforma. A orquestra cresceu com a presença e o incentivo dele. “Vai, vai!”, gritava, enquanto o trompetista Orlandinho de Paulo buscava notas cada vez mais altas nos solos de Cerejeira Rosa.

No mais, entre idas e vindas a São Paulo, restava-lhe aproveitar a vida na cidade – os martínis entornados em companhia de Bororó e de mulheres da noite no bar do Giacomo, na Estação Rodoviária, e, claro, as pescarias no final da tarde. Ia andando, geralmente acompanhado por Bororó, às vezes por Pedro, filho do maestro João Rodrigues. Equipado com vara de bambu e uma lata de extrato de tomate contendo minhocas, poderia ser confundido com um morador qualquer, não fosse a calça preta com o vinco bem marcado, o gabardine da camisa vermelha de mangas compridas e o sapato lustroso com que pisava as ruas de paralelepípedo e terra em direção ao Ribeirão São Domingos e ao Córrego dos Tenentes. Ia em busca de traíras, lambaris, bagres e, mais que tudo, de quietude.

Sentia-se à vontade tendo à frente o que lhe interessava – gente simples como ele, uma orquestra eficiente, a jogatina nas viagens. Até o dia em que comunicou aos companheiros que iria parar. Passou por Tupã e se alinhou à orquestra de Leopoldo por uma fase curta, marcada pela reclusão. Reclamava de dor de estômago, queixava-se dos rumos impostos aos profissionais da música. Leopoldo tratou de encomendar ao trombonista Senô Bezerra um arranjo que levantasse o ânimo do saxofonista. Senô apareceu com Samba Holandês, de sua autoria, transbordante de notas. Mais um solo impecável de Casé em primeira leitura.

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