28 de abril de 2009

Capítulo 30

Sangue no Luiz de Camões

Na manhã do dia seguinte, 30 de novembro, Waltinho estava sentado na sala de casa, na Vila Carrão. O telefone tocou. Era Mara.

– Liguei pro hotel. Disseram que o Casé está morto.

Antes de tirar o Fusca da garagem, Walter ligou para o baterista Toniquinho, diretor da Ordem dos Músicos.

– Tonico, encontraram o Casé morto.

– Como?

– Porrada. Bateram até matar.

Mara, Toniquinho e Wilson Sandoli, presidente da Ordem, já estavam no hotel quando Waltinho estacionou perto do número 179 da rua Aurora. Em seguida chegaram Tião, o irmão mais velho de Casé, e Elly. Waltinho apresentou-se aos policiais.

– Morte natural – adiantou-se um deles.

No chão o corpo, de cueca amarela e meias azul-marinho, expunha marcas roxas e ferimentos nos braços, na coxa direita, nas costas, na cabeça. Havia sangue lambuzando o telefone e as paredes do quarto. Sobre uma das camas, protegido pelo estojo surrado, repousava o velho saxofone levado dias antes por Ditinho e Ayres. No criado-mudo, o livro Pequenas Recordações Íntimas, de Décio di Giaimo, marcava na página 45 o poema Onde está você?:

Por favor, responda meu chamar
Saia do seu esconderijo doloroso (...)
Onde está você? Estará entre as sereias do mar?

No 2° Distrito Policial, Waltinho ouviu um comentário que lhe pareceu a antecipação do tratamento que seria dispensado ao caso:

– Teu irmão estava podre.

Marly foi ao Instituto Médico Legal. Toniquinho também. “Cheiro de morte”, pensou o baterista, enquanto entrava. Viu o corpo, preso por um gancho, numa piscina de formol de onde foi retirado e posto sobre a maca. Estava costurado até o pescoço. À noite, vestido com terno azul e gravata, Casé já estava sendo velado enquanto era esperado no teatro do Hilton Hotel para substituir um músico no show de Eliana Pitman. Do grupo fazia parte o trombonista Azevedo, que após o trabalho rumou para o velório do Araçá. Lá estavam a mãe, os irmãos, os amigos chegando. Entre eles, apenas um homem desconhecido de todos. Com uma capa por cima do terno, varou a noite e no dia seguinte acompanhou o enterro até o fim. Aproximou-se de Amendoim, que tantas vezes havia estado com Casé no hotel.

– Cê fica quieto, hein? – murmurou, ameaçador.

O corpo foi levado à quadra 134 e enterrado na sepultura 18. O estranho não se afastou até que todos fossem embora do cemitério.

***



Na manhã seguinte, a notícia estourou. “Morreu Casé, que os músicos reconheciam como o melhor saxofonista”, informou o Jornal da Tarde. “Morreu Casé, um dos maiores sax do Brasil”, ecoou o Diário da Noite. “Morreu o grande Casé, que tocava saxofone” foi o título da reportagem de capa do caderno Folha Ilustrada, na Folha de S. Paulo. “Nunca mais na música o sopro suave de Casé”, lamentou O Estado de S. Paulo. Ficava claro, enfim, que se tratava de uma pessoa importante o “saxofonista encontrado morto no quarto do hotel” a que se referia o título do Diário Popular, perdido entre notícias como a do julgamento da milionária Elza Leonetti, acusada de matar o amante Roberto Lee no Jardim América; o assassinato de um vigia em São Miguel Paulista e um assalto ao Banespa na Freguesia do Ó.

Contradições marcaram a cobertura. Mesmo sem o laudo do IML, que só seria registrado 57 dias depois, sob o número 5570, alguns jornais se apressaram a publicar a causa da morte. “Em meio a muitas anotações, o corpo de Casé estava caído no chão, vítima de hemorragia interna de uma antiga úlcera. Seus últimos movimentos foi (sic) assistir televisão até 11:30, subir para o seu quarto e, desesperadamente, tentar pedir auxílio ao porteiro por telefone”, relatou o Diário da Noite. Segundo o Jornal da Tarde, “havia muito sangue no seu travesseiro e isso foi explicado, inicialmente, desta forma por um perito: ele tinha sofrido um forte edema pulmonar agravado de uma cirrose hepática. Mais tarde, no entanto, o médico legista Roberto Petrili, que examinou cuidadosamente o corpo do músico, definiu a causa como traumatismo crânio-encefálico. Essa explicação médica trouxe suspeita junto aos policiais de que Casé pode não ter sido vítima de morte natural, como se pensava de início”.

Segundo o Diário Popular, o saxofonista, “de renome internacional, foi encontrado morto na manhã de ontem, num dos quartos do Hotel Luiz de Camões, na R. Aurora 479 (sic), em Sta, Ifigênia, onde morava há quatro meses. O delegado Adolfo Salomão, de plantão no 2° DP, foi informado do ocorrido pelo porteiro do hotel, onde constatou que o músico morreu há dois dias.” A Folha veio com uma observação: “Como disse ontem o delegado de plantão no 2° DP, que fez a ocorrência do caso, ‘ele não tinha inimigos’”. Junto com a notícia, o jornal editou um texto assinado por João Marcos Coelho cujo título não deixava dúvidas: “Um Pelé do instrumento”. O crítico relatava que, após ter voltado de São José do Rio Preto, “enfiou-se pela noite para sobreviver mal e porcamente”. E mais adiante: “Arredio, tímido, mas excepcional músico – o melhor saxofonista brasileiro, sem dúvida – Casé foi se distanciando de um público que jamais o conheceu, ao mesmo tempo que se aprimorava musicalmente com uma dedicação espantosa”.

Em O Estado de S. Paulo, foi este o último parágrafo do texto de Zuza Homem de Mello: “Casé levou uma vida nômade, às vezes estranha, e era um músico exigentíssimo, motivo pelo qual tinha atritos freqüentes com seus companheiros, principalmente os saxofonistas que, a seu ver, não executavam exatamente o que ele queria. Era um extraordinário leitor de partituras à primeira vista. Conta-se que muitas vezes transportava a parte do sax-tenor para a do sax alto na primeira leitura. Casé tinha um sopro suave, como a sua maneira de falar. Miúdo, com jeito de menino, era admirado por todos os músicos brasileiros, sobretudo os de São Paulo que o conheciam e comentavam a notável facilidade com que manejava os instrumentos de palheta. Mesmo os estrangeiros que o conheceram ficaram admirados de suas qualidades. Por isso, talvez, tivesse tido tantas desilusões que dirigiam sua vida num ziguezague errante, mas capaz de deixar, num pobre cabaré do Interior, sons inesquecíveis, dignos das maiores salas de concerto.”

***

Na semana seguinte, dona Isabel e Marly foram à delegacia. Um funcionário leu pra elas um documento que atribuía onze doenças a Casé, entre as quais a tuberculose.

– Como um tuberculoso poderia tocar um instrumento de sopro como ele? Eu vi o corpo dele, estava espancado, todo estourado – reagiu Marly.

Não houve resposta – apenas a recomendação, feita rispidamente, de que ela mantivesse a boca fechada. Desnorteadas, mãe e filha saíram da delegacia na Brasília verde-oliva de Marly, então morando num prédio sem garagem da rua Artur Azevedo, em Pinheiros. Na manhã seguinte, o manobrista do estacionamento onde o carro era guardado, na rua Cunha Gago, veio ao seu encontro. Estava nervoso. Não conseguia explicar como nem por quem a Brasília havia sido aberta.

– Não levaram nada – disse, intrigado, o manobrista.

Continuavam no carro os pacotes de compras feitas na véspera. Mas, constatou Marly, haviam desaparecido, sim, algumas coisas - um amuleto de pedra trazido da África por um diretor do sindicato em que trabalhava, um ímã com a imagem de Nossa Senhora e um terço branco, presente de Isabel, que ela deixava no porta-luvas. Pareceu-lhe iniciativa de alguém interessado em fragilizá-la emocionalmente, alguém querendo convencê-la de que, agora, estava desprotegida.

No dia 26 de janeiro, quase dois meses após a morte, o Instituto Médico- Legal registrou o Laudo de Exame de Corpo de Delito n° 5570, feito por requisição do delegado Adolpho Salomão e assinado pelos médicos legistas José Diniz Lourenção e José Gonçalves Dias. O documento descrevia o estado em que, enrolado num lençol verde, o corpo chegou ao IML. Havia ferimentos e manchas nos cotovelos, no antebraço direito, no punho direito, na coxa direita; marcas nas costas, hematomas na cabeça. Os legistas concluíra que “o êxito letal se deu devido ao traumatismo cranio-encefálico”, produzido por “agente contundente”.

***

Em 23 de março, uma sexta-feira, quase dois meses depois de registrado o laudo do IML, o jornal Notícias Populares publicou na página 15 uma nota que parecia dar novo rumo ao caso: “Dúvidas sobre a morte do saxofonista Casé”. O texto: “A morte do saxofonista José Ferreira Godinho Filho, o Casé, está sendo investigada desde ontem pela Delegacia Especializada de Homicídios do DEIC. No último dia 30 de novembro, Casé foi encontrado morto num quarto de hotel da Rua Aurora, onde residia. Ele estava caído entre o quarto e o banheiro, em meio a respingos de sangue. O apartamento estava fechado por dentro. Exames periciais realizados demonstraram a existência de equimoses em algumas das partes do corpo do músico. Embora o exame toxicológico tenha resultado negativo, os legistas acusaram onze doenças graves e deram como causa-mortis traumatismo craniano. O delegado Adolpho Salomão, do 2° Distrito, que a princípio imaginava tratar-se de morte acidental, admitiu a possibilidade de assassinato, passando o caso para a alçada da Divisão de Crimes Contra a Pessoa.”

Das “doenças graves” mencionadas pelo jornal, apenas uma estava citada no documento do IML – o fígado aumentado, sugerindo uma cirrose em desenvolvimento.

***

Waltinho já havia deixado de passar horas dentro do carro parado na Rua Aurora, à espreita, com a esperança de enxergar uma cena qualquer que ajudasse a desvendar a morte do irmão. Atendia à sugestão da mãe:

- Vamos deixar nas mãos de Deus.


Na edição de 13 de setembro de 1979, o Notícias Populares trouxe uma outra versão da polícia para a morte registrada mais de nove meses antes, no Boletim de Ocorrência n° 4238/78. Na página 7, sob o título “Casé teve morte acidental”, a coluna “Notícias do Deic” foi peremptória:

“José Pereira (sic) Godinho Filho, músico mundialmente conhecido como Casé, encontrado morto, com fraturas cranianas, no apartamento n° 42 do Hotel Luiz Camões, situado na Rua Aurora, 174, não foi vítima de homicídio e sim de morte acidental, em conseqüência de uma crise causada por edema pulmonar agudo, o que fez com que ele, ao tentar levantar-se da cama, caísse batendo a cabeça na parede ou no chão do banheiro, provocando traumatismo craniano-encefálico, conforme resultado de laudo médico. E isto é que, em resumo, relata o delegado Adherbal Gomes Figueiredo, da Equipe E, à Justiça. Sua equipe ficou encarregada da elucidação da morte de Casé, que, a princípio, foi tido como vítima de homicídio. O relatório do delegado se fundamenta em resultados de exames periciais realizados pelo perito criminal Paulo Barth, que apontam, entre outros dados, o fato de o telefone da residência do músico estar fora do gancho e com manchas de sangue expelido por via nasal, antes mesmo da queda, em virtude da crise pulmonar. O delegado se serve também, para fundamentar sua tese, do laudo do médico legista Aleixo José Vaqueiro, em que aponta, como causa da fratura craniana, um agente contundente passassivo (sic), o que significa que o músico não levou alguma pancada na cabeça mas bateu fortemente, ao cair”.

Caso arquivado.

8 comentários:

Anônimo disse...

Fernando

Parabéns, que belo trabalho! Agora fica uma vontade imensa de ouvir todos os sons do Casé.
Cristina Jorge

loyola disse...

maravilha de trabalho!gostaria de saber a autoria da música "quarto de hotel"

Anônimo disse...

É do maestro Hareton Salvanini, falecido em
2006.

HUMBERTO SCHETTINI disse...

parabens pelo documentario, so faltou um nome do saxofinista
schettini (esquetini}, que teve varias participações com o CASÉ.

Unknown disse...

Que estoria maravilhosa e ao mesmo tempo muito triste,que pena um musico deste era para estar até hoje tocando para o mundo ouvir,o verdadadeiro som de sax.duduka caruaru-pe.

Reis disse...

Parabéns!!!
Seu trabalho nos remete a uma época em que a qualidade da música era algo importante na vida das pessoas resultando no surgimento de ótimos interpretes. Felizmente, parece que, embora um tanto modestamente, o interesse pela qualidade está retornando e, para auxiliar nesse resgate é que peço permissão para divulgar seu trabalho que, sem dúvida colabora para tanto.
Reis

deciodigiaimo disse...

Olá, espero que leio este meu comentário. O livro que o senhor disse, do Décio Di Giaimo. Nos criamos um blog em sua homenagem, se poder acessar e divulgar irei agrader. Deste já obrigado. O site é http://deciodigiamo.blogspot.com

Luiz disse...

O Ponto dos Músicos era no Bar Avenida, S. João x Ipiranga, matriz da Salada Rio Branco e Bar Nova Avenida, aquele na Rio Branco x Aurora - vizinhjo do Avenida Danças e e Nova Avenida na mesma S. João, pouco antes do Avenida.
O Táxi Danças da Ipiranga, se não me engano sucessor do Avenida Danças, levou o nome de Chuá Danças.
Apenas minúcias que não dimunuem o brilhante trabalho biográfico do não menos brilhante Casé.

 
`