28 de abril de 2009

Capítulo 10

Vida mansa no Interior

Problemas, desencontros e reencontros, piadas e maledicências, apologias e, sobretudo, troca de informações sobre possibilidades de trabalho movimentavam a esquina da São João com Ipiranga. Foi lá, em 1953, que o saxofonista Marinho Gomes se encontrou por acaso com Chocolate, dono de uma orquestra no interior de São Paulo. Feliz coincidência. O excesso de viagens, programas de rádio e gravações, mais o movimento da cidade em expansão, estavam tirando a calma do saxofonista. Nem foi preciso alongar a conversa para Chocolate fazer-lhe a proposta:

– Quer trabalhar comigo?

Marinho não pestanejou:

– Quero. Não estou mais aguentando isso aqui.

Dias depois ele chegava a Santo Anastácio, na região de Presidente Prudente, para viver com pouco menos de um terço do que ganhava em São Paulo. Vida nova na cidade pequena, que o músico de 36 anos logo passou a mapear. Não foi difícil. Numa das primeiras andanças, encostou no balcão do bar Monte Castelo. Tornou-se cliente assíduo, atraído não apenas por quitutes e bebidas. Melhor que o cardápio era o sorriso de Adibi, a balconista, filha do dono do boteco. Ao retornar das viagens, Marinho corria para lá. Nos intervalos dos ensaios da orquestra, idem. Só faltava declarar-se apaixonado pela moça, que, recatada, ainda hesitava em demonstrar reciprocidade. Faltava um sinal, uma espécie de senha. Foi então que numa das suas visitas ao bar ele arriscou:

– Estou precisando comprar umas camisas de manga comprida.

Adibi agarrou a deixa.

– Eu faço isso pra você.

Foi às Lojas Karasawa e escolheu três. Noventa dias depois estavam casados.

A orquestra de Chocolate era composta por músicos talentosos como o violonista Santinho e o baterista Ailton. Mesmo assim, Marinho ficou menos de um ano. Com Adibi, o sax alto e a clarineta, mudou-se para Assis, onde passou a fazer parte da orquestra de Mantovani, que vinha aos poucos sendo composta por profissionais de alto calibre. Foram chegando o trompetista Laércio de Franca, Nico Batera, o cantor Quiqui, o saxofonista Clécio Fortuna, o trompetista argentino Juan Salazar, o guitarrista Ayres de Arruda, o acordeonista e pianista Luiz Mello, o clarinetista americano Booker Pitman.

Antônio Silvio Mantovani, o dono da orquestra, arregimentava músicos na Capital.

– Tá cansado de São Paulo? – perguntava de repente. Se a resposta fosse afirmativa, ele fazia o convite: “Então, vá pra Assis”. Em 55, a indagação seria feita a Casé.

Um ano antes, de volta do Iraque, o saxofonista juntara-se ao conjunto do pianista Robledo, atração de algumas das mais caras boates da época – a Arpège, a Esplanada e a Oásis. Eram pontos de encontro dos sobrenomes que habitavam as colunas sociais - Crespi, Matarazzo, Calfat, Pignatari. Os ricaços aplaudiam o grupo de Robledo e o contratavam para festas promovidas nas suas mansões.


Uma dessas recepções foi promovida por Ciccillo Matarazzo. A grã-finagem chega, bebida boa escorre para dentro dos cristais, e na sala principal o conjunto de Robledo anima a noitada. Harmonias requintadas feitas por uma “cozinha” segura e moderna oferecem amparo confortável para os solos do piano e dos sopros. Empunha os saxofones uma dupla de respeito: Casé no alto, Bolão no tenor. Aplausos mais que merecidos, muitas vezes puxados pelo conde Ciccillo, homem culto, amigo das artes, que num dos intervalos levou os músicos para a sua galeria particular. Todos aqueles mestres de variadas escolas da pintura diante de um Bolão curioso e pasmo:

– Ô, Ciccillo, por esse você pagou mais de dez mil cruzeiros, hein?

De Casé não se ouviu mais que uma risadinha contida. Nenhum comentário. Manteve-se no mesmo silêncio em que mergulhava nos camarins das boates durantes os momentos de descanso, o oposto do arrojo e virtuosismo que exibia ao soprar o instrumento. “Esse cara só pode ser um extraterrestre”, imaginava Bolão, ao observar o parceiro de sopro.

No conjunto de Robledo o dinheiro era bom. Nem assim Casé ficou. Começou a faltar, e um dia desapareceu de vez. Não foi difícil localizá-lo, depois, tocando para as garotas do Cuba Danças.

No ano seguinte, 1955, no Ponto, ouviu de Mantovani a mesma pergunta tantas vezes feita a outros músicos: “Quer passar um tempo no interior pra descansar de São Paulo?”. A proposta parecia interessante: uma boa orquestra numa cidade sossegada, na divisa com o Paraná, a poucos quilômetros do rio Sussuí. Ensaios duas vezes por semana, no clube ou na boate Don Juan, do trompetista Salazar. Perfeito. Negócio fechado. Ao chegar a Assis, Casé avistou um rapaz parecido com ele – branco, pequeno, magro, tímido. Era de Sorocaba e se chamava Arnoldo. Certamente perderia o posto de saxofonista alto para o imbatível músico recém-contratado. Sem problema: Casé tornou-se segundo tenor e tratou de ir atrás de moradia.

Alugou uma vaga de pensão na Avenida Rui Barbosa. O “quarto mobiliado”, conforme o anúncio da placa afixada na entrada da casa, tinha um criado-mudo e duas camas – uma para ele, outra para o pianista Luiz Mello. A dupla era equilibrada: um muito falante, o outro extremamente calado. Vidinha mansa: nos fins de tarde, aperitivo no bar Seleto, cujo dono, Tomé, era amigo dos músicos; nas noites de folga, serenata nas janelas das moças mais requisitadas da cidade; às vezes um cineminha. Numa sessão, assistida ao lado do saxofonista Clécio, um documentário sobre os marcos históricos de Roma precede o filme. Imediatamente, Casé se lembra da passagem pela Itália a caminho do Iraque e deixa escapar uma revelação:

– Já dei uma mijada ali, ó – diz, apontando para a tela que estampa o Coliseu.

Outro passatempo interessante era ir à gafieira Diesel, na Vila Xavier, animada por um grupo de oito músicos, entre eles o sapateiro Cornélio Fortuna, pai de Clécio. De repente, um murmúrio corria na gafieira: “O Casé tá aí”. Estava mesmo, e só para se divertir.

Os companheiros mais constantes nas pescarias eram Marinho, Luiz Mello, Nico Batera e Quiqui. Não raro voltavam, felizes e ruidosos, entre duas e três da manhã. Iam para a casa de Marinho. Adibi acordava e ia para a cozinha fazer arroz, salada e peixe frito para os marmanjos.


O resto era música, apresentada principalmente no Paraná. Londrina, Paranavaí, Jacarezinho, Cambé, Marialva, Rolândia – e lá ia levantando poeira a Ximbica, como era chamado pelos músicos o ônibus da orquestra. Pedidos de bis para uma seleção de valsas francesas em Ibiporã, para uma de sambas em Maringá, para as jam sessions nas domingueiras do Clube Recreativo de Assis. Depois, mais viagens e as paradas nos restaurantes de beira de estrada.

“Minha mãe, sim, faz uma comida boa”, dizia vez por outra Casé aos colegas. Ele não era, em absoluto, um gourmet. Tinha lá suas preferências, é claro. Em Assis, vivia à procura, em vão, de um filet tartar que provara na Bélgica. Mas refestelava-se com o bolinho de banana servido com arroz e feijão pela mãe de Mantovani, o patrão que se encantou com a camisa de seda, vermelha e estampada, vestida por Casé. Fizera parte do uniforme usado dois anos antes, na boate de Bagdá. Mantovani não precisou repetir o elogio. Ganhou a camisa na hora.


Ele era assim, generoso. A Luiz Mello sugeria discos e dava dicas eficientes de harmonia. A Clécio, queixoso do seu precário sax nacional do qual não conseguia extrair as notas mais baixas, instruiu: “Relaxa um pouco e sopra com mais vigor que sai”. Eureca: ao retomar o instrumento, os graves passaram a brotar com a nitidez desejada.

Fazer-se entender não exigia dele e dos que o conheciam um grande estoque de palavras. Quando seu irmão Pedro, também saxofonista, chegou a Assis para se integrar à orquestra de Mantovani, o diálogo entre eles, que não se viam havia meses, por pouco não se restringiu a monossílabos:

– Tudo bem?

– Tudo.

– E o pai?

– Tá bem.

Em meio a toda essa contenção escondia-se um tipo brincalhão, gaiato, capaz de tirar da boca um palito espetado num grão de arroz para fazer o drama do tipo “meu dente caiu”. Ou de embarcar na Ximbica, após um baile em Londrina, com sorriso inocente no canto da boca e um ovo no bolso. Amanhecer invernal, vidros fechados. O ruído do motor embala o sono de quase todos os passageiros. De repente, o plácido império de Morfeu sofre o ataque de Flatus, uma espécie de, digamos assim, general romano que ocupa o ônibus com emanações pútridas. Casé reage, espatifa casca, gema e clara no chão da Ximbica. Trava-se uma luta intestina, irrespirável, entre protestos gerais e tardios.


Um comentário:

Monica Farias Kail disse...

Ontem, passando o Natal com meus pais, Papai, como sempre e, mais agora, quase cego, vivendo de mil lembranças e nos mostrando suas composições, apareceu com um pedacinho de papel de uma partitura que escrevera, na hora, em 1958, junto ao amigo Clécio. Tratava-se de uma valsa para o pai de Clécio tocar em sua flauta. Aproveitei para abrir a página de Clecio e fui encontrando outros grandes amigos. como Casé, aqui, dentre outros. Papai contou um pinguinho aqui, outro ali, momentos que compartilharam.
Papai não toca mais devido a alguns problemas de saúde e principalmente pela perda da visão, totalmente de um lado e quase toda de outro. Restou-lhe apenas alguns poucos focos. Vou colocar em breve, a Valsinha que Papai fez para o Sr.Cornélio, pai de Clécio tocar e dp volto aqui para informar. Visitem a minha página no Face. Em breve colocarei todas as composições de Papai ali. Mônica

 
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