28 de abril de 2009

Capítulo 23

Aventuras rio-pretenses

Corria o mesmo ano de 1969 quando dois homens procuraram a casa da família Godinho, no Cambuci. Eram Renato Peres, sax barítono, e Boca, percussão. Estavam ali para convencer Casé a integrar o conjunto que estava em formação em São José do Rio Preto. Não seria um grupo qualquer. Teria bom repertório, bons músicos, bons contratos, conforme ia expondo Renato.

– E a grana? – quis saber o convidado.

Foi-lhe oferecido um dinheiro superior ao que seria recebido pelos demais músicos. Proposta aceita. Mudou-se para o apartamento de Renato, de quatro quartos, sala e cozinha amplas, em cima da Padaria Santos Dumond, na Vila Ercílio. Lá viviam também a cantora Heleninha, dona Maria, Vanda e Renatinha - repectivamente a mulher, a mãe, a irmã e a filha de Renato – e mais o baixista Tripa. Casé alojou-se num dos quartos, com a mala de roupas, o sax, um litro de martíni e livros sobre temas diversos - desde história da filosofia até vitamina C com texto em inglês, passando por uma inacreditável Enciclopédia Prática Comercial em 12 volumes.

Logo de início se deu bem com tudo e todos. Embora não fosse o que se poderia considerar um bom garfo, apreciava a comida, em especial a polenta à bolonhesa e o macarrão feito em casa com frango ensopado. Às vezes assistia, ao lado de dona Maria, à novela Nino, o Italianinho, com Juca de Oliveira, transmitida pela TV Tupi.


Quando os ensaios começaram, na sala do apartamento ou no Clube do Lago, percebeu que estava bem cercado. Renato - ou Homão, como Casé preferia – era competente no barítono e adorava jazz. Boca, não bastasse ser um músico intuitivo, talentoso, fazia imitações de artistas como Jerry Lewis, Ronald Golias e Mazzaropi. Heleninha, sem se render exclusivamente às canções de sucesso fácil, interpretava autores como Edu Lobo. E o time se completava com outros profissionais experientes.* Outros músicos passariam pelo conjunto, como o trombonista Senô, com quem Casé havia convivido em Tupã, o baterista Wiliam Cegão, o tecladista Ezio Fortuna e o tenorista Silas de Souza.

Em dois carros, uma Rural Willis e uma perua Chevrolet Veraneio, viajavam pelo Interior de São Paulo, Mato Grosso, Minas e Paraná. Mais que baile, o que faziam era baile-show. À abertura feita com Harlem Noturno emendavam Corrida de Jangada, de Edu e Capinam. A uma certa altura da noite, os músicos, sem parar de tocar, invadiam a pista de dança. Um êxtase. Depois, era só retornar a Rio Preto e passar alguns dias dedicando-se à folga e à criação de arranjos.

Dia de ensaio, Renato havia viajado. Heleninha preparava o almoço para os músicos, Casé entrou na cozinha.

– Ô Turca, não leve a mal. Eu queria permissão pra pegar o barítono do Renato.

O instrumento era grande para ele. Levantou-se e, com um dos pés apoiando o sax, tocou My Funny Valentine. Saiu tão bonito que um silêncio emocionado ocupou a sala, invadiu a cozinha e se transformou em lágrimas escorridas pelo rosto de Heleninha.

– Um dos maiores músicos do mundo está aqui!

Era Boca, durante entrevista à Rádio Independência. Mas quem disse que Casé esperava um tratamento diferenciado na cidade? Preferia sentar num banco de praça, brincar com cachorros da rua, fisgar piapara do rio Turvo na companhia agitada e falante de Mario Peres. Ou, ao lado de Boca e Mario, entrar no Pinguim, na Salada Paulista, num bar qualquer, pedir uma dose e subitamente gesticular como se estivesse regendo ou tocando bateria.

– É isso aí.

Era como se festejasse ao final da mímica. Mais um arranjo, este feito de cabeça, para se juntar aos que fazia assobiando nos quartos de hotel.

***
O conjunto continuava a colecionar admiradores e contratos. Os ensaios eram feitos com toda seriedade. Se necessário fosse, Casé corrigia acordes e até se sentava à bateria para mostrar uma passagem, sempre com muito cuidado para não ferir os colegas:

– Dá licença; desculpa, viu?

O resto era viajar, tocar, às vezes enfrentar imprevistos para cumprir compromissos durante os quais se enxugavam até dois litros de uísque. Em Araxá, o baile não teve sax alto, cujo titular ferveu de febre depois de ter passado horas dormindo sob sol forte, à beira da piscina. Em Monte Aprazível, inventou-se uma tendência para acobertar a ausência do baterista (“Agora é assim, o pessoal do Severino Araújo também está tocando sem bateria”, mentiu Renato). A caminho de Promissão, a Rural Willys furou um pneu dianteiro e capotou três vezes. Heleninha quebrou a clavícula, Casé teve luxação numa costela, mas só o primeiro dos quatro bailes de Carnaval ficou sem eles. Em Campo Grande, a polícia invadiu o hotel, expulsou os músicos, revirou as malas e não achou nada que justificasse um flagrante.

Baile de réveillon em Corumbá. À meia-noite, os músicos tocam a indefectível valsinha que despacha o Ano Velho. Cadê Casé? Boca o avista sentado numa escadaria atrás do palco, sozinho, mexendo em alguma coisa que esconde ao perceber a aproximação do ritmista.

– Feliz Ano Novo - arrisca-se Boca.

– Obrigado. Mas...porra!

Uma pausa. Ele continua:

– Vou te falar uma coisa. Falam que eu sou isso, que eu sou aquilo, mas grande foi ele.

E mostra o que havia escondido no bolso do paletó momentos antes. Uma foto de Clóvis.

***
Numa fase de estiagem de bailes, Renato levou os músicos a Mirassol, cidade próxima de Rio Preto, em busca da ajuda da mãe-de-santo Dona Cida. Casé ciciou um “mas, porra...” e seguiu o cortejo.

Começa a sessão. Dona Cida aproxima as mãos das costas de cada um e faz uma primeira observação:

– Tem coisa pesada aqui.

Casé exercita o velho tique de pressionar o pulso esquerdo com a mão direita. A mulher conduz todos ao quintal da casa, incendeia círculos de pólvora, faz o descarrego, abaixa-se aos pés de Chico Sala e olha para Renato. “Um dos seus músicos vai morrer assim”, ela diz, babando uma saliva esbranquiçada. Menos de um mês depois, Chico está na porta de um bar conversando com Boca. “Me ajude”, ele pede, antes de cair de costas na calçada. A espuma lhe escapa da boca. Morreu na maca, chegando ao hospital.

Outro músico da cidade que passou por maus bocados foi o trompetista Mané Careca. Pai de cinco filhos, sofreu um derrame que o impediu de trabalhar. Para ajudar a família, o pianista Roberto Farath organizou um show no dia de Santa Cecília, no Automóvel Clube. Noite de gala. Escreveu para orquestra de cordas e coral. Casé, embora não conhecesse o colega que seria beneficiado, encarregou-se dos arranjos para quatro trombones, cinco sax, quatro pistons e cozinha. Em Mambo Jambo pôs cinco baterias para tocar. No Harlem Noturno, tirou agudos em regiões até então inalcançadas.

Foi uma fase de boemia preguiçosa, muitos amigos, alguns estremecimentos com Renato e reencontros com Paulo Moura, que algumas vezes esteve na cidade em visita a parentes. Casé conseguiu ficar dois anos e meio em Rio Preto. Quando retornou a São Paulo, não tinha sax para tocar. Paciência. Não era a primeira vez que ficava sem o instrumento, e sempre havia quem lhe emprestasse. A vida, o show, os bailes continuavam.

* Além de Tripa (baixo), Nestor (bateria), Chico Sala (piston), Mario Peres, irmão de Renato (clarinete e sax tenor) e Pedroca (teclado).

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