28 de abril de 2009

Capítulo 26

O dancing resiste

Enquanto amadureciam talentos como o de Proveta, parte da velha-guarda resistia na decadente noite paulistana. No Avenida Danças alternavam-se orquestras teimosas, como a de Elly e uma outra, liderada pelo saxofonista Bauru. Hélio Ramiro, trompetista iniciante, ia ao dancing para ouvir os veteranos. Subindo a escada a caminho do salão, reconhecia o autor do solo de sax. “É ele”, pensava, antes de enxergar Casé. Bailavam casais, levados pela música ininterrupta da orquestra em revezamento com um conjunto menor. Mulheres, algumas belas, eram disputadas. Três se destacavam. Ancas largas, coxas roliças, seios generosos, cabelos esvoaçantes. Para os músicos eram as Irmãs Metralha, craques na arte de conquistar senhores grisalhos, donos de carteiras bem-fornidas.

Certa noite, chegam dois rapazes, um de costeletas, o outro de cabelos escorridos pelo rosto. Convidados a tocar, Nivaldo Ornelas e Victor Assis Brasil aceitaram imediatamente. O encontro de Victor com Casé resultou em diálogo apenas musical. Pouco se falaram. Victor retornaria ao Rio pouco depois.


Casé ficou. Continuou a frequentar o centro da cidade, a recusar o mundinho das celebridades, a cortar o cabelo no salão no térreo do Avenida, a tomar café, conhaque ou martíni num bar da Ipiranga com Rio Branco, a trabalhar no dancing, receber a paga e desaparecer dali por um tempo. Para onde ia? Para um estúdio, por exemplo, gravar em 74 a arrojada trilha composta por Hareton Salvanini para a pornochanchada A virgem de Saint Tropez, que viria a se tornar um disco disputado no mercado de raridades. Poderia ainda estar em Santos, hospedado num quarto de pensão de onde saía para animar os bailes de Carnaval do Clube Ilha Porchat.


Só os observadores mais atentos pareciam perceber o descaso com que cada vez mais os músicos vinham sendo tratados. “Poucos sabem, por exemplo, que Casé – exímio saxofonista-alto – é considerado o maior do Brasil e já foi apontado pela revista norte-americana Down Beat como um dos dez maiores músicos no gênero em todo o mundo.” Na Folha de S. Paulo de 15 de agosto de 1975, o colunista Walter Silva aproveitava ainda para citar outros “grandes nomes que não fariam feio em parte alguma”: Dirceu, Toniquinho, Arrudinha, Nei, Antonio Pinheiro, Claudio Slon, Airto Moreira, Gabriel Bahlis, Claudio Bertrami, Chu Viana, Zé Bicão e Luisão.

Slon e Airto já viviam nos Estados Unidos. Casé continuava em São Paulo, trabalhando, entre uma e outra viagem, em locais como o Avenida. Lá esteve, por um tempo curto, com a orquestra de Roberto Gagliardi. O baterista, jovem, vestia um paletó preto excessivamente largo, cujo dono, Bolo Fofo, adoecera. Jorginho Saavedra, incumbido da substituição, olhava de longe o músico misterioso sobre quem tanto se falava, aquele mesmo que chegava, sentava-se de pernas cruzadas e acendia um cigarro. Não falava, mas observava e, se fosse o caso, manifestava-se com curtas frases de estímulo.

– Fala pra esse menino continuar. Tá tocando bem.

Casé sumia de novo, e de repente ressurgia. Lá ia ele, outra vez com Elly, trabalhar no Clube Homs da Paulista, ou nos ainda mais modestos Cartola, na Brigadeiro, e Patropi, na Alameda Santos. Ao seu lado poderiam estar músicos experientes, como o trombonista Bom Cabelo, um negro assim apelidado em referência aos fios caprichosamente alisados. Pouco se falavam, até porque Bom Cabelo, preocupado com a alfaiataria em que trabalhava a partir das oito da manhã, não tinha tempo a perder com as rodas de músicos formadas para tomar uns tragos depois do baile.

Cabelo não era o único a ter duplo ofício. Na década de 50, ao sair da Rádio Gazeta, onde tocava piano e regia a orquestra Columbia, o maestro Totó passava a ser o médico Antônio Serge, cardiologista. E, novamente nos anos 70, quem se dedicava, além da música, a outra atividade era o trompetista Cilinho. Chegou a São Paulo em 58, vindo de Urupês, na região de Catanduva. Seis anos depois ingressou na Força Pública. Daí a mais nove anos, estava no palco dos salões de dança sobreviventes ao lado de Casé, primeiro entre idas e vindas com a turma de Elly; depois, com a orquestra Réveillon.

Tornaram-se bons amigos, conduzidos para o trabalho e a boemia no Fusca amarelo de Cilinho, a quem Casé não se negava a dar dicas sobre escalas pentatônicas, interpretação, harmônicos. Havia entre ambos uma camaradagem que, imaginou Cilinho, oferecia abertura para todos os temas.

Madrugada fria. Os dois andando pelo Centro.

– Zé, posso falar uma coisa pra você?

– Depende.

Cilinho tinha mulher e três filhos, casa própria, automóvel. Discursou:

– Não sirvo nem para limpar o teu sapato. Músico nenhum serve. Mas, Zé, consegui comprar a minha casa, meu carro. Você é solteiro. É só fazer uma poupança e comprar um apartamento, pra você viver mais tranqüilo.

Soou mal.

– Peraí, não vem fazer sermão. Não aceitava ouvir esse tipo de coisa nem do meu pai.

– Eu sei, Zé, só tô querendo o seu bem-estar.

– Não devo nada pra ninguém.

– Só tô dizendo que um cara como você merecia ter uma casa.

– Não precisa falar isso pra mim, não. Eu não aceito.

Tudo bem. Cilinho continuará a oferecer carona a Casé, que mais adiante ficará sem dinheiro e, para atravessar a crise, venderá ao parceiro um órgão nacional Diatron.

Cilinho morava em Santo André. Um empresário da cidade resolveu montar um conjunto. Pediu-lhe para arregimentar os músicos. Cilinho não podia se dedicar com exclusividade, tinha o trabalho da PM. Indicou Casé. A reação do empresário:

– O saxofonista? Puta merda, me traz esse cara.

Reunião no escritório com secretária, carpete, ar condicionado e cafezinho. Exigências:

– Quero o Cilinho tocando, quero escolher o pessoal pra formar um noneto e escrever os arranjos.

Condições aceitas, com registro em carteira e um bom salário. Casé saiu do escritório imaginando com entusiasmo um grupo semelhante ao que comandara na década anterior. Nunca mais voltou. Cilinho foi atrás dele. Ouviu uma justificativa seca.

– Ih, rapaz, não tô nessa, não. Tô indo pra orquestra Bandeirantes.

Foi mesmo. E ficou por poucos dias.

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