28 de abril de 2009

Capítulo 1

Como toca este niño!

A orquestra de Sylvio Mazzucca atravessava uma fase esplendorosa. Cumpria rotina agitada, entre bailes, estúdios de gravadoras e televisão. E havia ainda a Rádio Bandeirantes. Todos juntos, ou subdivididos em grupos, os instrumentistas participavam de diferentes programas apresentados ao vivo. Para a contratação da big band dispensava-se a figura do intermediário. Aos interessados bastava subir ao sexto andar do prédio onde funcionava a emissora, na rua Paula Souza, em São Paulo, e bater à porta da sala do maestro, um homem de bigode e óculos de armação grossa, que ele vivia ajeitando sobre o nariz. Com o mambo Tequila nas paradas de sucesso, a orquestra fechou o ano de 1958 com uma agenda de bailes iniciada no dia 4 de novembro e só interrompida mais de quatro meses depois, em 15 de março – tudo isso sem deixar de fazer os programas da Bandeirantes.


Para atuar num deles, comandado pelo maestro espanhol Joaquim Almella, escalava-se um octeto - dois trompetes, um trombone, saxofones alto e tenor, piano, baixo e bateria. Composto por integrantes da nata dos profissionais de São Paulo, o grupo não fazia ali o som dos seus sonhos. Mesmo nos bailes, enquanto rodopiavam os casais, havia repertório e arranjos mais interessantes a executar, repartidos entre os ritmos latinos, as vertentes do samba e os standards de jazz, o baião e os primeiros sinais da bossa nova e do
rock'n´roll. Nota por nota, os músicos construíam um painel do que então se ouvia no Brasil. Mas para eles o programa de Almella se aproximava de uma sessão de tortura. Restava armar-se de profissionalismo e enzimas digestivas para enfrentar aquele osso do ofício. Era o que faziam os instrumentistas - à exceção de um deles, o rapaz pequeno e calado do sax alto.

Os arranjos rococós do maestro pareciam remetê-lo aos horrores da Espanha franquista. Para sobreviver à missão, apelava para a caricatura: transformava-se no pior saxofonista da mais insuportável bandinha de um lugarejo qualquer. Guinchava a cada quatro compassos, interpretava como músico de quinta categoria, expelia um timbre desprezível. Convencido das limitações do rapaz, Almella não o deixava solar no arranjo de uma fantasia pela qual tinha clara predileção. O maestro em pessoa encarregava-se daquele momento solene todas as vezes que a peça era incluída no roteiro.

Um dia, de surpresa, a produção anunciou a fantasia. Pegou Almella desprevenido, sem o seu instrumento. Nervoso, ele se viu obrigado a convocar o tal músico, de tão poucos recursos. Mostrou-lhe a partitura, explicou-a em detalhes. Com o sax apoiado na coxa direita, ajeitando a palheta, o rapaz se limitava a responder: “Sim, senhor; sim, senhor”. Ensaiou desafinando, abusando do som trêmulo - o perfeito instrumentista das retretas interioranas.

Sob os auspícios do conhaque Palhinha, o programa entra no ar com a grande audiência de sempre – e chega a hora do arranjo de Almella. O maestro se planta diante da estante do moço magrinho, certo de que seria preciso auxiliá-lo durante a leitura. Mas o rapaz, pobre músico de coreto, levanta-se e começa a tocar de verdade. Um sopro cheio, seguro, a interpretação irretocável, um resultado muitas vezes superior ao sugerido pela partitura. Atônito, o espanhol vai-se afastando, olhos arregalados, a boca semiaberta. Aproxima-se do também saxofonista Lambari e sussurra: “Como toca este niño!”. Lambari resolve, então, contar a verdade ao chefe desavisado: “Maestro, ele é o Casé. Na revista Down Beat está na lista dos melhores do mundo.”

6 comentários:

Anônimo disse...

Barros e Pacheco. Essa dupla vai dar o que falar.
Que belo começo a publicação desse blog!
O livro não tardará a acontecer, para despeito dos invejosos e regozijo dos entusiastas.
Parabéns aos queridos amigos dos quais me orgulho e incentivo.
Julio Minervino

Altayr Ribeiro da Silva disse...

Sr. Fernando

Ainda não li e ouvi tudo. Vou deixar para a hora que a emoção baixar. Minha retina trouxe de volta o semblante do Casé (menino) na Usina Junqueira. Era meu vizinho. Por enquanto, só o registro. PARABÉNS - estou deveras emocionadíssimo. Um grande abraço - Altayr

Anônimo disse...

Parabens Fernando.
Por recomendação do amigo Paulo Oliveira, pude apreciar seu trabalho.
Tenho lido todos os capítulos com bastante interesse. Infelizmente não tive o prazer de conhecer o Casé mas sou seu admirador assim como de outro saxofonista da mesma época que também teve grande influencia sobre todos os músicos: Victor Assis Brasil.
No ano passado estive em Guaxupé tocando com a Orquestra do Silvio Mazzuca num tibuto ao Casé (40 anos da morte), evento este organizado pela família dos Alcantara ( Carlos Alberto, Vitor, Daniel, Maguinho, Ratinho, etc) e pela OMB. Toquei como 2º tenor e o 1º alto ficou a cargo do Mazinho outro músico sensacional. Foi muito legal.
Novamente parabéns pelo trabalho.
José Roberto Rittes

Anônimo disse...

Caro Fernando, tomei conhecimento do blog pelo artigo dominical do Roberto Muggiati na Gazeta do Povo de Curitiba,onde resido. Sou compositor, produtor e pesquisador de Música Popular. além do que a família de minha mãe Ana Marques é de Guaxupé e,desde jovem, eu ouvia falar do Casé. Redobrada emoção,pois,ver este seu maraviolhoso trabalho. Parabéns e obrigado em nome da família,dos músicos e da Música Popular Brasileira.
Ronald José Magalhães

Unknown disse...

Sou fã do Casé e agora virei seu também através do meu "irmão" Osmar Barutti descobri este trabalho fantástico que Deus continue te protegendo/iluminando o seu "garimpo" musical "VIVA" CASÉ, " VIVA" FERNANDO!!!
OOOOBBBBBRRRRIIIIIGGGGAAAADDDDOOOOO!!!
Julio Torres(Rio de Janeiro)

SONHADORIA PAULISTA DE TUDO disse...

Um vigoroso texto!Além do talento do Casé, nota-se a sagacidade do jornalista que além de excelente músico deixa transparecer o que os antigos chamavam de "a mão-da-massa"...
Além de boa literatura, sinto o roteiro pronto de um bom filme...Hei! Cadê vocês investidores?Onde estão os bons farejadores...
Sinto um "A sangue frio" do Capote, só que sem as partes pretensiosas...
Parabéns ao grande jornalista Fernando Barros!
ass: Formiga Matarazzo.

 
`